"Aqui a Dimensão do Entretenimento e do Conhecimento se encontram no mesmo Universo"

Milton A. Rothman-O Planeta Pesado




O PLANETA PESADO


Ennis estava completando a sua patrulha do Setor EM, Divisão 426, do Oceano Oriental. O tempo mostrava-se singularmente agradável, o ar com espesso líquido rugindo ao longo do barco, numa fúria contínua que o levava a uma velocidade como se voasse, deixando para trás pequenas ondas encrespadas, que se elevavam e baixavam com espantosa rapidez. Uma rajada forte e selvagem, uma comoção, cortou o espaço e lançou-se sobre o oceano como a martelada de um poderoso gigante, jogando o pequeno barco para diante, perigosamente.
Ennis rapidamente segurou os controles, músculos fortes como granito aparecendo em baixo-relevo sob o macacão, corpo imensamente forte, a pele brilhando como escamas sob o jato cortante da água. O calor proveniente do sol que se elevava no horizonte como enorme lanterna vermelha era de intensidade tangível, tornando um inferno o vento que soprava.
O pequeno barco que Ennis manobrava por pura força muscular, elevou-se no ar e nele pareceu permanecer por vários segundos, antes de enfiar novamente a sua quilha na água. Com freqüência flutuava assim por longa distância, pois o ar era muito denso. O limite entre o ar e a água dificilmente podia ser definido por completo, pois algumas vezes os dois elementos fundiam-se um no outro, imperceptivelmente. A pressão podia fazer coisas estranhas.            -
Como uma partícula de poeira luzindo em um raio-de sol, um diminuto ponto de luz atraiu a atenção de Ennis. Um planador, pensou ele, mas estava confuso. Por que tão longe e aqui no oceano? Planadores eram coisas bem desagradáveis para manobrar sob a violência do vento.
A partícula de poeira foi atingida pela luz, novamente. Estava agora mais baixa, descendo com uma rapidez que significava perigo. Uma rajada de vento apanhou-a e fê-la cair mais rápido. Passou então a flutuar, vagarosamente, por algum tempo, até que foi atingida pelo vento mais uma vez, vento que parecia destorcer todo o seu contorno.
Ennis torceu a proa do barco a fim de abrir caminho até a nave que caíra. Era curioso, pensava ele: onde estavam as asas? Seriam asas retráteis ou se teriam quebrado? A coisa avolumou-se, ficou mais perto e, afinal, não era um planador. Muito maior do que qualquer planador existente, tinha uma forma ridícula que não ficaria ereta por um só instante. Em face da brusca batida do aparelho ao atingir a água – uma chapinhada que decaiu quase ao mesmo tempo em que se elevou – um certo pensamento começou a dar.voltas na mente de Ennis. Um pensa mento que era mais importante do que qualquer outra coisa naquele planeta – ou pelo menos assim o era para ele. Porque se aquilo era o que estava pensando – e tinha de ser – tratava-se do que Shadden havia estado á procurar desesperadamente durante anos. Que golpe de inconcebível sorte, caindo assim do céu bem em frente aos seus olhos.
A forma prateada vagava lentamente sobre as águas turbulentas. Ennis fez o barco aproximar-se com rapidez mas, com perícia, fê-lo diminuir a marcha, de modo.que os dois aparelhos, ao se aproximarem, chocaram-se levemente. O metal do aparelho estranho amassou-se como se fora feito de borracha leve. Ennis ficou pasmado. Estendeu o braço para sentir a superfície curvilínea do aparelho – e seu dedo enfiou-se diretamente no metal. Que espécie de gente era aquela que fazia naves de material tão fraco?
Manobrou o seu pequeno barco ao lado do aparelho maior e subiu para uma abertura. A parede da nave cedeu sob ele. Compreendeu que devia ser mais cuidadoso, pois aquela coisa era amedrontadoramente frágil. Não permaneceria intacta por muito tempo, de maneira que teria de trabalhar com rapidez se quisesse salvá-la. A pressão atmosférica já deveria tê-la achatado há muito tempo se não fosse pelos entalhes denteados sobre os quais a pressão pudera estabilizar-se.
Depois de atingir a abertura, desceu cuidadosamente para o interior da nave. A passagem era muito estreita e, para alargá-la, simplesmente segurou e forçou-a para os lados, o que facilmente conseguiu. Ao entrar, olhou com desconfiança mesclada de desprezo para os insignificantes dispositivos, chapas e alavancas, que não passariam de objetos de papel em seu próprio mundo. Nada havia permanecido em sua forma original. Maquinaria mutilada e amassada, tubos de vácuo quebrados, peças vergadas, tudo havia sido arruinado pela gravidade e pela pressão.
No chão havia uma massa que não examinou acuradamente. Parecia mais uma geléia vermelha, comprida e adelgaçada pelo efeito da gravidade cem vezes mais: forte e de uma atmosfera dez mil vezes mais pesada do que aquela para a qual fora criada.
Ennis agora estava numa sala cheia de botões e painéis nas paredes, aparentemente uma sala de controle. No centro havia uma mesa e, sobre ela, um mapa – um mapa de um sistema solar. Mostrava nove planetas – enquanto o seu tinha apenas cinco.
Foi então que compreendeu que estava certo. Se eles vinham de um outro planeta, o que desejava devia estar ali. Não podia ser outra coisa.
Encontrou uma escada que descia. Grande maquinaria enchia o recinto lá embaixo Não havia luz mas ele não notou. Podia ver bastante bem por infravermelho e a quantidade de energia necessária para suster o seu compacto gigantismo, mantinha-o em radiação constante.
Passou depois por uma porta que era maciça, apreciavelmente compacta até mesmo em seu planeta – e ali estava a coisa. Reconheceu-a imediatamente. Era grande, grossa e forte. O metal era macio, mas de espessura suficiente para manter-se sem desagregar-se sob a enorme força de atração do seu mundo. Jamais havia visto qualquer coisa igual àquela. Era cheia de cabos, espiras, magnetos e dispositivos de formatos desconhecidos para ele. Shadden porém saberia. E não somente ele mas, quem sabe, quantos e muitos outros cientistas antes dele, haviam tentado inventar alguma coisa que pudesse fazer o que aquilo poderia – mas todos haviam falhado. E sem as coisas que aquela máquina poderia executar, a raça dos homens do Planeta Pesado estaria condenada a permanecer na sua superfície, irremovivelmente agrilhoados ali pela esmagadora gravidade.
Era a energia atômica: Soubera disto tão logo se certificara de que não se tratava de um planador – pois nada mais a não ser a energia atômica e os ventos furiosos, seria capaz de levantar qualquer corpo da superfície do Planeta Pesado. Os processos químicos não eram importantes. Não existe coisa tal como uma explosão onde a atmosfera que pressiona para dentro possui força maior do que a explosão que pressionaria para fora. De todas as possíveis fontes teóricas de energia, somente a atômica poderia realizar o trabalho necessário para elevar uma nave e levá-la a deixar a órbita do planeta. Qualquer outra fonte de energia simplesmente seria fraca, não teria força suficiente.
Sim, Shadden e todos os cientistas deviam ver aquilo. E deveriam ver com maior presteza, porque as forças do oceano e da tempestade poderiam facilmente reduzir a nave a pedaços e, o que era ainda mais importante, os cientistas de Bantin e Marak poderiam obter o segredo se os outros se demorassem. E se conseguissem tal coisa, seria a ruína completa – a perda da antiga supremacia da sua nação, mantida durante idades. Bantin e Marak eram nações guerreiras: se obtivessem o segredo, passariam a usá-lo contra todos os mundos que abundam no Universo.
E o Universo era grande. E aí estava por que Ennis estava tão certo de que aquela nave fora impulsionada por energia atômica. Porque, ainda que tivesse tido origem em um planeta tão pequenino onde a energia química fora suficiente para elevá-lo a um ponto de vencer a gravidade (embora tal coisa fosse difícil de se imaginar), para viajar vencendo as distâncias que separam as estrelas, somente uma única coisa teria tal poder.

Voltou a atravessar a nave tentando descobrir o que tinha acontecido.
Ali estavam mais daquelas polpas, jazendo ao lado de longos tubos que se projetavam, através de engenhosas portinholas, para o exterior. Reconheceu que se tratava de armas, cujo exame valia a pena.
Devia ter havido uma batalha e Ennis visualizou a cena. As forças que vinham da energia atômica deviam ter alterado até mesmo o espaço na sua vizinhança. A nave rompera-se, os ocupantes foram mortos, os controles quebrados e fora então cegamente arremessada, a uma titânica velocidade, dentro do vazio. Finalmente, chegara suficientemente perto do Planeta Pesado para ser atraída pelo seu descomunal poder de gravidade.
Foi então que ouviu a sirene. Foi o clamor do alarma que o fez voltar-se e correr para o seu barco. Muito além, entre as ondas que se elevavam e caíam tão abruptamente, divisou um barco longo e baixo que abria caminho em direção dos destroços da nave espacial. Vislumbrou um rutilar colorido sobre a superestrutura cinzenta e arredondada e compreendeu que se tratava de um navio de guerra de Marak. A sorte apresentava-se forte em ambos os extremos: antes fora boa, agora era má. Poderia facilmente ter iludido o navio de guerra, saindo no seu próprio e pequeno barco, mas não podia deixar os destroços. Uma vez perdido para o inimigo, jamais o recuperaria e era por demais valioso para deixar escapar.
O vento elevava-se e rugia em volta de sua cabeça e ele retesou os músculos para evitar ser lançado fora, uma vez que se equilibrava ali, parte em seu próprio barco e parte sobre os destroços. O sol se deitara e os ventos da tarde haviam começado a soprar. Ajudado por eles o navio avançava, a proa fendendo a resistência da água que era lançada para os lados.
Ennis pensava rápido, furiosamente. Com um gesto rápido fez estalar rapidamente o comutador do radiofone e chamou Shadden. Com atormentada impaciência esperou até que a voz de Shadden se fez clara em seu ouvido. Por fim teve a certeza de que a comunicação estava feita e disse então:
– Shadden! Aqui é Ennis. Apanhe o seu planador, Shadden, voe na direção a45j, na minha rota! Rápido! Aquela coisa está aqui, Shadden! Mas não tenho mais tempo. Venha!
Desligou o radiofone, retirou a válvula do fundo do seu barco, apoiando-se em um dos lados dos destroços. Rapidamente o oceano subiu e afundou seu pequeno barco que num instante desapareceu tragado pelas ondas, levado para o fundo. Tal providência impediria que fosse encontrado, pelo menos por algum tempo.
Agora estava de volta à escuridão reinante na espaçonave. Supunha que não havia sido notado ao subir para a abertura. Onde poderia esconder-se? E deveria esconder-se? Não poderia enfrentar um navio de guerra completo, sozinho e sem armas. Não existiam armas que pudessem ser portadas, de qualquer forma. Um feixe de luz actínica concentrada, que destruiria os olhos e o sistema nervoso, tinha de ser comandado pela inteira potência dos geradores de um navio de guerra. Armas para golpear e cortar jamais haviam sido desenvolvidas em um mundo onde a carne era mais dura do que o metal. Ennis era.perito em combate pessoal, mas como poderia enfrentar todos os que entrariam nos destroços?
Desceu novamente para a câmara escura onde o enorme gerador atômico elevava-se acima de sua cabeça. Agora procurava alguma coisa que havia deixado passar antes. Arrastou-se em volta do gerador examinando os seus recessos. E então, a alguns pés acima, descobriu uma abertura, elevou-se até ela cuidadosamente a fim de não destruir a preciosa coisa com o seu peso. A abertura estava coberta por uma substância pesada, de uma transparência não propriamente translúcida, através da qual se escoava um tênue brilho, procedente do interior. Ficou então satisfeito. De alguma forma a matéria estava ainda sendo desintegrada ali dentro e a energia poderia ser dirigida, se soubesse como.
Ali estavam chapas, arames de todos os tamanhos e barras coletivas, tubos grossos e pesados que se curvavam pelo seu próprio peso. Alguns dirigiam-se para dentro e outros para fora; seria melhor não mexer neles. Procurou então uma nova pista. Seguiu para o andar de cima novamente, para os locais onde havia visto as armas.
Estavam todas montadas em pesados, rígidos suportes. Cuidadosamente separou os tubos das bases. Na primeira vez que tentou não foi suficientemente cuidadoso e parte do próprio projetor fendeu-se, mas na vez seguinte já sabia o que estava fazendo e ele se desprendeu sem danificar-se. Era uma coisa grande, quase tão grossa quanto o seu braço e duas vezes mais longa do que ele. Pesadas chapas partiam da sua extremidade inferior e atrás havia uma alavanca. Esperou que a arma estivesse em condições de funcionar – mas não ousou experimentá-la; tudo o que podia fazer era examinar as chapas e certificar-se de que estavam intactas.
Já não lhe sobrava mais tempo. Ouviu uma pancada surda e em seguida golpes menores à medida que a tripulação do navio subia a bordo da nave. Houve um momento em que ouviu uma pancada forte, como se alguém tivesse atravessado de lado a lado a parede da nave.
– Idiotas! – murmurou Ennis e seguiu para a frente, com a sua arma, em direção à escada. Ruídos vinham de cima e logo em seguida uma forte batida amassou os painéis do teto. De um pulo Ennis tentou sair do caminho mas toda aquela parte do teto veio abaixo e, com ela, dois homens. O chão cedeu, mas suportou o peso por um momento. Apanhado sob a parte do teto que se desprendera, Ennis conseguiu desvencilhar-se dela, apareceu com uma viga na mão e com ela golpeou a cabeça de um dos maraks. O homem simplesmente sacudiu-se e saiu em perseguição a Ennis que aparou seu golpe gingando, contra-atacando com uma bofetada que deixou uma marca negra na pele que era como uma armadura e arremeteu o inimigo contra a parede oposta. O outro já estava no encalço de Ennis que se esquivou com a rapidez de alguém que habitualmente se movimenta sob uma pressão de dez mil atmosferas; atirou depois o marak para longe, deixando-o inconsciente com uma torção em um ponto sensível.
O primeiro oponente retornou e os dois se abraçaram, ambos à pro cura de centros nervosos que pudessem ser atingidos. Ennis contorceu- se freneticamente, consciente do real perigo que a fragilidade da nave podia trazer se se desfizesse em pedaços sob seus pés. O parapeito de uma escada cedeu sob o peso dos dois, estatelaram-se contra ela, esmagando os degraus até o chão, O peso de ambos os seus movimentos fizeram o resto. Ennis relaxou o golpe de torção que aplicava no marak e impediu a sua própria queda segurando-se em uma das vigas que faziam parte do travejamento da nave. O outro, porém, continuou na sua devastadora queda, demolindo a concha interna, atingindo a mais inferior que também cedeu com um terrível ruído de esmagamento. A última parede da nave rompeu-se e o marak desapareceu na água que, borbulhante, começou a invadir os destroços.
Ennis olhou para baixo, onde o marak havia caído, silvou uma súbita inalação de ar e em seguida mergulhou num movimento súbito, que não pôde impedir. Lutou contra a água que subia, irrompendo através do rasgão aberto na quilha. Agarrou-se a uma viga, que cedeu sob a força de sua mão e que seguiu para adiante, contra a corrente. A água infiltrava-se como um gêiser através da abertura, transformando-se em poderosa corrente que o levava para trás e começava a encher o fundo da nave. Contra aquela terrível pressão forçou passagem para adiante, vagarosamente, combatendo as ondas invasoras e, por fim, alçou-se com um poderoso movimento e atingiu a abertura. As suas bordas tinham-se dobrado para trás, sobre si mesmas, pela força da água invasora e estavam escancaradas como uma mandíbula denteada. Segurou-as com as suas mãos poderosas e puxou-as com toda a sua força. Resistiram por um momento, mas começaram a endireitar-se. Com irresistível energia puxou-as e acertou-as na sua posição original e então, tomando as arestas das partes rompidas, apertou-as, comprimindo-as em seguida. O metal tornou-se maleável em suas mãos e começou a fluir. As bordas da placa soldaram-se sob aquela poderosa pressão. Forçou ligeiramente a massa para baixo e logo a superfície estava inteiramente imune à entrada da água. Flexionou os dedos ao levantar-se, pois eles doíam: até mesmo a sua força estava sendo submetida a dura prova.
Ruídos fizeram-se ouvir vindos lá de cima. Os homens estavam descendo para investigar o que acontecera. Ficou parado ali, por um momento, para pensar. Decidiu forçar uma parede livre. Atravessou-a, puxando depois as placas e vigas e colocando-as na sua posição original. Estava agora em outra extremidade da nave e subiu uma escada. Lá em cima, um corredor estava deserto, percorreu na ponta dos pés procurando o lugar onde havia deixado a arma que preparara. Um tumulto fez-se ouvir lá em cima quando os maraks encontraram o homem que ficara inconsciente.
Dois homens surgiram, andando pesadamente pelo corredor, dando- lhe apenas uma fração de tempo para entrar por uma porta em um dos lados. Encontrou-se em um dormitório. Ali estavam duas polpas vermelhas e nada que pudesse ajudá-lo, de maneira que ali ficou apenas o tempo suficiente para certificar-se de que não seria visto se saísse. Continuou a andar fazendo o menor barulho possível. A algazarra dos homens lá em cima ajudava-o. Parecia que estavam reduzindo a nave a pedaços. Mais uma vez Ennis amaldiçoou a idiotice deles. Não podiam ver quão valioso era aquilo?
Estavam porém na sala de controle, danificando a maquinaria com sua curiosidade infantil, conjeturando sobre a estranha fragilidade do metal com textura de papel, sem compreender que no mundo onde fora fabricado era suficientemente forte para suportar qualquer impacto que os construtores pudessem prever.
A estranha arma que Ennis havia preparado estava no chão de uma passagem, exatamente do lado de fora da sala de controle. Olhou ansiosamente para os cabos lançados no chio. Teriam eles pisado e quebrado aquilo? Estaria o instrumento em condições de funcionar? Teria de apanhar a arma e sair, não havia tempo para experimentá-la e verificar o seu funcionamento.
Um barulho por trás dele fê-lo mais uma vez entrar pela primeira porta encontrada, enquanto um enorme marak, usando um cinto colorido, passou como um raio pelo corredor, dirigindo-se à sala de controle. Esbravejou as suas ordens terminantes e os homens pararam com a destruição que faziam na sala. Quase todos, à exceção de alguns, deixaram a sala e espalharam-se pela nave. O rosto de Ennis contorceu-se em uma careta. Aquilo tornava as coisas mais difíceis. Não poderia combatê-los sozinho e não poderia usar a arma dentro da nave, se é que ela era o que ele pensava, levando em consideração o tamanho de seus cabos. Um marak postara-se na porta de entrada do quarto onde Ennis se escondera. Não podia sair por ali. Olhou em torno e verificou que não havia outra porta. Uma vigia na parede que dava para o exterior da nave, pareceu-lhe um disco fino, transparente. Examinou aquilo, sentiu-o com as suas mãos e subitamente enfiou-as através da vigia. Tão silenciosamente quanto pôde trabalhou em volta daquele círculo, alargando-o, até que se tornou um buraco bastante largo por onde pôde passar. As bordas denteadas não o incomodavam. Pareciam-lhe macias, como nacos de manteiga.
O navio dos maraks estava ancorado ao lado da espaçonave. Deste lado o vento rugia terrivelmente e as ondas de dentes de serra estendiam-se a perder de vista para um horizonte que ficava a milhas de distância. Com cautela lançou-se à água e contornou a forma roliça e brilhante da nave abandonada, passou em frente à proa lutando com esforço contra o perigoso fluxo da água que o forçava para trás e que atingia cada polegada do seu corpo. O vulto mais escuro do navio de guerra elevava-se à sua frente à medida que completava a curva e ele nadou através do pequeno espaço a fim de agarrar-se à corrente que, da superfície do navio, projetava-se para baixo. Subiu por ela, os músculos fortes como carborundo retesando-se para combater todas as forças da gravidade e do vento que o lançavam para baixo. Perto do topo da curva do navio havia um dispositivo de forma aerodinâmica. Apalpou em volta da sua base e ali encontrou uma alavanca que acionou. A bola de metal foi para trás, revelando um enorme suporte giratório, com um espesso projetor cilíndrico no seu topo.
Movimentou o suporte giratório e deixou-o lançar um súbito e curto raio de fogo branco por todo o convés deserto do navio de guerra. De dentro do navio vozes profundas fizeram-se ouvir, alguns homens saíram para o convés para retroceder imediatamente, a emitir gritos que sufocavam suas gargantas, quando Ennis os apanhou sob o intolerável feixe de luz do projetor. Homens escudados por cinco mil milhas de atmosfera, da luz actinica, acostumados a receber apenas o vermelho e o infravermelho, são dolorosamente vulneráveis à amedrontadora concentração do ultravioleta.
Ruídos e gritos vinham agora da espaçonave abandonada, sendo apanhados e dispersados pelo vento tormentoso que parecia castigar a todos com novo vigor naquele momento. Cabeças apareceram nas aberturas.
Subitamente Ennis levantou-se com todo o seu peso, enfrentando o vento tão denso, capaz de fazê-lo flutuar. Com um urro fez menção de cobrir o espaço que o separava da nave destroçada. Mas então, como um grupo de maraks começou também a avançar, com dificuldade, escorregando ao atravessar o flanco do navio de guerra, na sua direção, e como um outro grupo que saíra da espaçonave se avolumara no seu convés danificado para verificar que comoção era aquela, agachou-se por trás do projetor de luz ultravioleta e virou-o rapidamente, acionando o comutador.
Era exatamente o que havia desejado: fazer um enorme barulho, provocar um grande distúrbio para obrigá-los a ficarem todos no convés e então reduzi-los a pedaços. O feixe de luz devoradora partiu do holofote e os homens no convés da nave abandonada imediatamente abaixaram-se. Ennis descobriu que não podia flexionar o projetor suficientemente para baixo, a fim de atingi-los. Manteve-o portanto apenas na direção da espaçonave. A incandescência porém atingiu o auge, para em seguida diminuir e desaparecer. A corrente havia sido cortada no quadro de distribuição de energia.
Ennis deixou o seu lugar por trás do projetor quando foi atingido por dois maraks que sobre ele se lançaram, pelas suas costas e protegidos pela escuridão que reinava no navio de guerra. Os três caíram n’água e afundaram, Ennis lutando violentamente. Parecia-lhe ser o começo do fim, de modo que usou de toda a sua força, num vigoroso impulso. A água debatia-se em volta deles em pequenas e agitadas ondas que caíam com rapidez maior do que a vista podia acompanhar. Golpes mais pesados do que aqueles que poderiam ser desferidos com um martelo, na Terra, atingiam o rosto e a cabeça de Ennis. A sua posição era demasiado aflitiva para revidá-los e subitamente desapareceu da superfície e afundou de uma vez. Em volta dele a pressão da água era enorme e rapidamente aumentava à medida que descia. Foi então que viu o vulto escuro da parte afundada da espaçonave, logo acima dele. Os seus pulmões já lutavam pelo ar, mas ele combateu a inconsciência que se avizinhava e nadou obstinadamente, abrindo caminho por baixo dos destroços. As suas braçadas eram pesadas e firmes. Parecia-lhe que aquela distância relativamente curta, seguindo a curva metálica, não teria fim. Vista de baixo, a nave parecia enorme e, à tentativa de nadar cobrindo a sua largura, fazia com que parecesse ainda maior.
Por fim, pôde elevar a cabeça e seus pulmões avidamente inalaram o ar. Não havia tempo para descansar porém. Devia fazer o uso da vantagem alcançada, enquanto lhe pertencia. Nadou ao longo da nave à procura de uma abertura. Não havia nenhuma que pudesse atingir estando na água, de maneira que fez uma, enfiando seus dedos rígidos e grossos no metal, dilacerando-o, até que pôde fazer um apreciável rasgão no revestimento exterior, mais grosso, e em seguida na parede interna.
Elevou-se da água para a abertura feita e se encontrou na sala de máquinas, no segundo plano da nave. Seguiu pelo corredor e subiu pela escada parcialmente destruída, achando-se depois na passagem principal, perto da sala de controle. Entrou nesta última e nela não havia ninguém, embora os ruídos que vinham de cima indicassem que os maraks estavam descendo novamente. No chão, ali estava a sua arma, onde a havia deixado. Congratulou-se porque eles não a haviam descoberto e destruído. Pelo menos haveria alguma coisa a ser salva para um estudo, um exame inteligente.
A conversa do grupo que descia transformou-se em clamor de ódio quando o descobriram na passagem principal, no fim do corredor. Ficaram ali parados por um momento, perplexos. Ele havia caído no oceano e agora, magicamente, aparecera dentro da nave abandonada. Foram aqueles segundos que deram tempo a Ennis para empunhar a sua arma.
Debatia a questão consigo mesmo, rapidamente, e decidiu arriscar no que lhe era desconhecido. Quão poderosa era a arma ele não sabia mas, tratando-se de energia atômica, tinha de ser fulminante. Não lhe era agradável usá-la dentro da espaçonave; desejava que muito ainda restasse a flutuar sobre a água, até a chegada de Shadden; mas os maraks já começavam a avançar e ele tinha que fazer alguma coisa.
Acionou o gatilho. O cilindro apoiado em seu ombro escoiceou com grande força; um jato de energia feroz e ofuscadora dele partiu e com a rapidez da luz atravessou o corredor, em todo o seu comprimento.
Quando pôde ver novamente, já não havia mais. corredor. Tudo o que havia estado no caminho daquele projétil fora-se, simplesmente desaparecera.
Sem sentir o calor que agora aquecia o objeto em suas mãos, voltou- se e dirigiu a arma para o navio de guerra que passara a ser claramente visível através do espaço aberto onde, há instantes, estavam as paredes da nave. Antes que os homens do convés pudessem mover-se, puxou o gatilho novamente.
Por um momento os ventos aquietaram: mesmo os elementos naturais silenciavam, amedrontados, em face das forças incríveis que podiam desencadear pela desintegração dos átomos. Mas logo em seguida, com um brado de agonia, o furacão soprou novamente, rolando pelo espaço onde há momentos apenas havia estado o navio de guerra.
Lá longe, no céu, Ennis viu alguma coisa que se movimentava. Era Shadden que se apressava com o seu planador.
Agora viria o trabalho realmente importante. Shadden examinaria a grande máquina e verificaria como funcionava. E seria disto que a história se lembraria.